Portugal: Mário Soares, o grande estadista português, revive nas suas obras | Internacional

Mário Soares fotografado num comício na vila portuguesa de Viana do Castelo.MIGUEL RIOPA (AFP)

A definição mais poética de Mário Soares (1924-2017) de todas as ouvidas na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, foi feita esta segunda-feira pelo seu homem de confiança, José Manuel dos Santos: “Toda a sua vida foi a escrita constante de duas palavras: democracia e liberdade. Soares está, sem dúvida, nos altares de Portugal depois de uma biografia política que estreou como jovem estudante protestando contra o fechamento intelectual da ditadura e culminou no seu reconhecimento como um dos estadistas europeus do século XX. Ele era um daqueles políticos construídos sobre uma armadura cultural que lhe permitia ver além das luzes fracas que muitas vezes caracterizam a vida política. “O meu pai era um político que queria ser escritor”, evocou, entre outros, a sua filha Isabel Barroso Soares, na apresentação do primeiro livro da Obras de Mário Soares, que será publicado nos próximos anos pela Imprensa Nacional-Casa de la Moneda. “Para quem tinha uma visão literária da vida, esta é a mais bela das homenagens”, acrescentou.

Soares foi um autor prolífico, que publicou mais de 80 livros que abrangeram quase todos os gêneros, da poesia aos ensaios ou romances. Seu arquivo, no entanto, está cheio de documentos inéditos e escritos de alcance ainda desconhecido. “O arquivo Soares é para a história política o equivalente ao baú de Fernando Pessoa para a história da literatura”, afirmou José Manuel dos Santos, atual diretor cultural da Fundação EDP e braço direito de Soares durante 20 anos. Dos Santos coordena a equipe que está preparando o inventário desses três milhões de documentos que vão alimentar um acervo que pode chegar a vinte volumes. Na segunda-feira, Dos Santos fez rir o público que encheu o auditório da Fundação Gulbenkian com algumas anedotas sobre o político socialista: “Ele fantasiou escrever um livro sobre os cinco funerais mais engraçados a que assistiu, como o de Brejnev”.

Presidente Adolfo Suárez com o primeiro-ministro português Mario Soares, durante sua visita oficial à Espanha em novembro de 1977.
Presidente Adolfo Suárez com o primeiro-ministro português Mario Soares, durante sua visita oficial à Espanha em novembro de 1977.

Sobre Soares, que o precedeu na Presidência da República entre 1986 e 1996, Marcelo Rebelo de Sousa disse ter tido uma vida “mais do que intensa” na luta pela democracia, na Revolução e na consolidação das liberdades e afirmou definiu-o como “um colosso”. “Tinha a riqueza de ter sido militante do Partido Comunista Português e de ter fundado o Partido Socialista, de ter sido um destacado protagonista da Revolução, deputado, primeiro-ministro e chefe de Estado”, disse Rebelo num discurso que decidiu improvisar em vez de ler o que tinha escrito “A democracia exige uma memória um pouco mais longa e o esforço desta recolha é este: alongar a memória dos portugueses para que compreendam que é possível que haja outra política para além da política que uns fazem e outros escrevem para além do que alguns escrevem”, afirmou o Presidente da República, que hoje apresenta um livro dedicado a Jorge Sampaio, outro chefe de Estado socialista. Mais um exemplo da consideração e respeito institucional que os políticos portugueses cultivam ainda que não partilhem militância partidária ou visão ideológica.

O primeiro-ministro, o socialista António Costa, sublinhou que na carreira de Soares “são reconhecidas as qualidades que constituem um herói no nosso imaginário: idealismo, coragem, audácia, tenacidade e carácter exemplar”. Soares pagou a sua oposição à ditadura de Salazar e Marcelo Caetano com prisões e exílio. Durante seu exílio na década de 70 fundou o Partido Socialista em Berlim junto com outros líderes e rompeu definitivamente com o comunismo. Foi um dos principais líderes civis do processo revolucionário iniciado em 1974 e defensor da convocação de eleições. Curiosamente, o primeiro escrutínio democrático foi feito na mesma fundação onde na segunda-feira o volume zero do Obras de Mário Soaresque se tornou o primeiro-ministro da jovem democracia entre 1976 e 1978.

O título inaugural inclui a reedição do primeiro livro publicado por Mário Soares em 1950, As Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga, no pensamento do líder republicano. Durante a sua leitura na Faculdade de Letras de Lisboa, Soares protagonizou uma rebelião que lhe custou a tese. Perante os comentários de um membro do tribunal, motivado pelo carácter político da obra, Soares arrancou-lhe das mãos o texto e anunciou a sua saída: “É uma pena, não tenho consideração por ti”.

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Calvin Clayton

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